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Créditos: Keyth Felix  

18 ANOS. E AGORA? 

A realidade dos jovens que atingem a maioridade em entidades de acolhimento 

Por Talita Raiumundo Alves 

Nascer e crescer com o conforto, apoio e a proteção de uma família estável e feliz, que te oferece todas as condições e recursos para que você decida quando e de que maneira deseja obter sua independência, vivendo em outro lugar, distante dos seus. Mas e se aos 18 anos, sem ter essa estrutura familiar para te dar suporte, você fosse obrigado a deixar o lugar que foi seu lar por muitos anos, e não tivesse a menor noção do que fazer e para onde ir?

Essa é a realidade de 29.365 crianças e adolescentes brasileiros que vivem em abrigos, entidades de acolhimento, lar transitório ou unidades de reinserção social, caso eles não sejam adotados até atingirem a maioridade. O dado é do Sistema Nacional de Ação e Escola (SNA), e está presente no site do Conselho Nacional de Justiça.

Muitos deles, como Joyce Silva, 20, e Igor Gonçalves, 20, foram parar em uma instituição acolhedora pelo mesmo motivo:  os pais tinham o vício em drogas e perderam a guarda deles e de seus irmãos. Outros possuem histórias bem peculiares. Foram para um abrigo fugindo do país, devido a ameaças. É o caso de Albertina Makiesse, 19, que é natural da Angola, na África. Ela foi criada ao lado dos pais e dos irmãos, mas foi levada para uma instituição aos 16 anos, quando chegou ao Brasil sem a família, que ficou no seu país de origem.

Para jovens como Joyce, Igor e Albertina, uma data que costuma ser comemorada com alegria, por remeter às ideias de independência e conquista, acaba sendo muito temida, à medida que os dias correm e ela se aproxima. Segundo dados de outubro de 2021 do Sistema Nacional de Ação e Escolha (SNA), do Conselho Nacional de Justiça, 7.759 jovens têm mais de 15 anos e terão que deixar os abrigos em breve. Quando saem desses espaços, há apenas uma opção de moradia fornecida pelo Estado: a república jovem, um modelo de instituição criada pela Prefeitura de São Paulo (existem instituições correspondentes em outras cidades) para abrigar jovens de 18 a 21 anos, vindos de entidades de acolhimento, que não têm ou não querem ter laços com a família ou não conseguiram uma forma de viverem com independência. Se o jovem está em uma república, ele tem a consciência de que precisa correr contra o tempo para resolver seu futuro, e isso muitas vezes sem saber por onde começar. 

 

Ainda segundo os dados do Sistema Nacional de Ação e Justiça (SNA), nos 5.132 Serviços de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (SAICAS) espalhados pelo país o perfil dos acolhidos é majoritariamente masculino, com mais de 9 anos, pardos e pretos. De acordo com o último Levantamento Nacional das Crianças e Adolescentes em Serviços de Acolhimento, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), de 2013, esses indivíduos foram levados aos abrigos devido à negligência familiar, situação de dependência química e alcoólica dos pais e responsáveis ou por abandono. 

 

Ainda de acordo com o estudo, mais de 46% dos acolhidos estavam, na época da pesquisa, em fase de avaliação ou preparação para reintegração e retorno ao convívio com familiares e responsáveis. O restante não pode ou não deseja se reintegrar à família, não foi adotado ou simplesmente não quis ser colocado para a adoção. Em alguns casos, como o de Albertina, a instituição nem mesmo considerou essa possibilidade.

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Fonte: Cadastro Nacional de Adoção (os dados foram consultados em outubro de 2021 e estão sujeitos a variações em decorrência de atualizações diárias no site). 
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Fonte: Sistema Nacional de Ação e Escolha (SNA), do Conselho Nacional de Justiça. 

Conhecendo Joyce

Joyce foi levada ao primeiro abrigo aos 11 anos junto com a sua irmã mais nova, Júlia, que, na época, tinha em torno de um ano e meio. Sua mãe se tornou viciada em álcool, por ter sofrido violência física do companheiro, por isso uma pastora de uma igreja próxima começou a cuidar de Joyce e de Júlia. O pai havia falecido há alguns anos e a irmã do meio ficou sob os cuidados do padrasto.

No período em que vivia com a pastora, houve uma audiência, mas como sua mãe não compareceu, o juiz considerou como desistência de guarda e ordenou que ela e a irmã fossem direto para o abrigo. “Foi bem estranho. Tinha duas mulheres do meu lado no carro, uma assistente social e uma psicóloga. Eu fiquei pensando ‘pra onde eles estão levando a gente?’”, lembra. 

Nesse primeiro abrigo Joyce presenciou algumas educadoras agredindo sua irmã, por isso sempre se envolvia em conflitos com a equipe técnica, até que deixou o local cerca de um ano e seis meses depois. Após isso, passou sete anos abrigada em diversas instituições no estado de São Paulo. Os abrigos tentaram reintegrá-la tanto na família de origem como em família extensa (parentes próximos da família de origem). 

Na primeira tentativa, o padrasto pediu a guarda de Júlia - sua filha biológica - e de Joyce. Segundo ela, o juiz iria ceder, considerando que ele havia cuidado dela por um tempo, apesar de não ter laço sanguíneo. Contudo, o padrasto só conseguiu a guarda de Júlia, pois a madrinha de Joyce entrou com pedido de guarda ao juiz. 

 

Aos 13 anos, Joyce foi levada para a casa dos padrinhos, mas foi devolvida ao abrigo, pois a madrinha alegou conflito no casamento, devido aos ciúmes do filho biológico. Na terceira tentativa, Joyce foi levada para a casa da tia paterna. Lá, sofreu agressões das primas, além de preconceitos como homofobia e racismo. Joyce é lésbica e sua tia não aceitava. A tia se isentava da responsabilidade de manter a integridade física de Joyce, uma vez que não intervia nas agressões que ela sofria das primas.  “Minha tia era bem rígida, homofóbica e racista. Ela só me aceitava, porque eu era sobrinha dela”, conta. 

Joyce com a namorada, Rita, e seu cachorro, Bob. Fotos por Talita Alves/Arquivo pessoal.

Ela afirma que as instituições tentavam reintegrá-la à família, pois sabiam da dificuldade que ela teria em ser adotada, por conta da idade. Mesmo após passar por essas situações, os abrigos tentaram aproximá-la da mãe e da tia, mas Joyce pediu ao juiz que não permitisse a visita delas na instituição. Minha mãe eu só queria manter o contato, mas não queria morar com ela. Minha tia eu não queria por perto por conta dos conflitos”, explica. 

Nesse meio tempo ela conheceu Adriana, uma vizinha que tentou pegar sua guarda, quando ela voltou para o abrigo. O juiz negou alegando que Adriana e o esposo não tinham nenhum laço sanguíneo com Joyce. Ela foi encaminhada a um abrigo de passagem e de lá foi levada ao Saica Rio Pequeno (SP), na zona sul de São Paulo, onde permaneceu até a maioridade.

Ao fazer 18 anos, Joyce foi direto para uma república jovem, onde conseguiu uma vaga após a desistência de outra adolescente. No vídeo a seguir ela conta como foi esse processo:

Conhecendo Igor

Igor decidiu fugir de casa com os seus dois irmãos com aproximadamente 10 anos de idade. Ele não suportava mais o vício da mãe em drogas e as dificuldades financeiras. “Uma noite meus irmãos mais velhos, Bruno e Rafael, decidiram que iam pro abrigo e, como eu era muito apegado a eles, fui junto. Não queria ficar em casa sozinho.” 

Eles foram para a Catedral da Sé, no centro da capital paulista. Alguns mendigos cederam lugar numa kombi que estava encaminhando as pessoas em situação de rua para os abrigos.  Igor foi para uma instituição em Santana, na zona norte, ficando separado dos irmãos por um tempo.

Ele e os irmãos fugiram diversas vezes do abrigo. Nesse período, a instituição tentou reintegrá-los à família de origem, mas o juiz nunca autorizou a saída de nenhum deles por conta do vício da mãe. Após um tempo, ele foi encaminhado para um abrigo na zona leste da cidade, onde teve contato com outra irmã, a Tainá. 

Desse abrigo, foi levado ao Instituto Solid Rock (SP) e permaneceu lá até os 17 anos. Foi nesse local que conheceu outro irmão biológico chamado Thales (foi direto para o abrigo quando nasceu, por este motivo eles ainda não haviam se conhecido). Igor conta que não quis criar um laço com Thales, pois sabia que o irmão estava em processo para ser adotado. “Quando eles me perguntaram o que eu achava dele ser adotado, eu achei melhor pra ele, porque ele ia crescer dentro do abrigo e completar 18 anos. Não é legal pra ninguém, né?”.

Igor com a namorada, os amigos e seu cachorro. Fotos por Talita Alves/Arquivo pessoal.

Nesse período, a mãe de Igor começou um tratamento em uma clínica de recuperação e, mais tarde, se recuperou do vício, mas ainda não tinha condições financeiras para acolher ele e os irmãos. Em relação ao pai, Igor conta que, apesar dele nunca ter agredido a mãe ou feito uso de drogas, nunca houve um laço entre os dois.

Igor teve a oportunidade de ser adotado diversas vezes, mas não aceitou devido à sua timidez e por não querer se separar dos irmãos novamente. Além disso, tinha a consciência da demora no processo de adoção no Brasil.  A república jovem e a volta para a família de origem também nunca foram opções levadas em consideração por Igor, pois ele não queria passar mais tempo tutelado pelo Estado ou ter de conviver com a família. Veja no depoimento do jovem: 

Conhecendo Albertina

Quando estava na Angola, Albertina morava em uma casa com os pais, as quatro irmãs mais novas, um casal de tios e as primas. Seu pai era pastor e sua mãe costureira. A família tinha uma loja de material de construção, onde ela passava parte do dia ajudando nas tarefas. 

Apesar da infância e da adolescência ter sido rodeada por familiares, Albertina passava mais dificuldades do que no Brasil. “As coisas lá não eram tão fáceis igual aqui, sabe? Pra fazer um trabalho da escola a gente tinha que pesquisar em livro mesmo, não tinha como fazer em um computador e quando eu ia (para uma lan house) era tudo muito caro”, relembra. 

A jovem chegou ao Brasil com 16 anos, sozinha e grávida de sete meses. Ela conta que ficou abrigada em uma igreja na região da Sé, mas pouco tempo depois foi encaminhada ao Instituto Solid Rock (SP), onde permaneceu cerca de um ano e dez meses, até completar a maioridade. O abrigo não tentou reintegrá-la à família de origem, pois eles não moravam no país, também não houve nenhuma tentativa de a encaminharem para a adoção, devido à idade. 

Albertina com o seu pai e sua filha, Alaide. Fotos por Talita Alves/Arquivo pessoal.

Quando sua filha nasceu, a instituição conversou com Albertina perguntando se ela queria que a criança fosse colocada para a adoção, o que ela prontamente recusou. “Eles também não me obrigavam a cuidar dela no abrigo, eu cuidava porque eu queria. Eu gostava de ficar com ela e queria ir embora de lá com ela”, afirma. 

Ao completar 18 anos, Albertina foi morar com o pai, que chegou ao Brasil na época para que ela não perdesse a guarda da bebê, chamada Alaide. No vídeo abaixo ela conta como foi esse processo: 

Cotidiano nos abrigos

O cotidiano nos abrigos

Albertina e Igor ficaram abrigados na mesma instituição, a Solid Rock Brasil (SP). Lá precisavam seguir diversas regras, que visam uma boa convivência. O local conta com uma estrutura destinada à educação e preparação profissional de todos os acolhidos. 

A Solid Rock segue um modelo de organização em níveis, agrupando as crianças e adolescentes de acordo com o comportamento de cada um. “No nível 1 a gente não podia nem assistir à TV. Tínhamos que ficar no quarto ou no refeitório, não podíamos fazer nada. No nível 2 você já pode sair.  No 3 você pode ir para festas, acompanhado dos orientadores do abrigo e no nível 4 a gente podia sair sozinho, fazer tudo o que quisesse e escolher o cardápio da semana”, conta Albertina.

Os níveis eram rotativos, ou seja, se algum abrigado cometesse alguma infração (como falar palavrão, desrespeitar algum funcionário, cabular aula, etc.), a equipe técnica o rebaixava de nível imediatamente. Além disso, havia diversas outras regras, mas Albertina conta que não ficava incomodada com nenhuma delas. 

Todos deveriam acordar às 8h e ir dormir às 22h. Algumas tarefas domésticas também deveriam ser feitas por eles. “Cada um tinha o seu dia de fazer as suas tarefas de casa, na segunda era limpar o banheiro, na terça arrumar o quarto e por aí vai. À noite tinha o dia de cada um lavar a louça, limpar o refeitório e a sala”, relembra. 

Ela também conta que eles podiam fazer diversos passeios, e que sempre iam para o Parque da Juventude (SP), para usar a sala de computação, pois usar celular dentro do abrigo era proibido. 

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Créditos: Keyth Felix  

Já Igor relembra essas ordens com certa indignação. “Por conta de um que fazia bagunça, a gente não podia sair, brincar, assistir à TV... Durante a semana só podia ligar a TV depois das cinco da tarde. No sábado tinha que acordar às oito pra receber as visitas. Fazer o que né? Éramos obrigados a respeitar. Também tinha que sair pra passear, se não caia de nível”, explica. 

Sobre os passeios, Rodrigo Alencar, 31, que trabalhou como orientador no Saica Jovens do Futuro (SP), na zona sul de São Paulo, afirma que há uma dificuldade em trabalhar atividades socioeducativas com crianças e jovens institucionalizados em geral. “Eles me falavam que não queriam fazer nada, que no final de semana eles queriam estar em casa como a gente gostaria de estar, descansando. Eles queriam acordar um pouco mais tarde no sábado, poder escolher o que eles queriam fazer naquele dia”, afirma Rodrigo. 

O abrigo em que Joyce ficou institucionalizada também tinha regras semelhantes, como horários específicos para acordar e dormir, passeios e obrigações com as tarefas domésticas, mas ela afirma que a maioria dos adolescentes tinha celular e podia usar o aparelho livremente. Além disso, após os 15 anos eles podiam sair sozinhos, desde que deixassem o contato de onde estavam indo e chegassem em casa até as 22h. Portanto, percebe-se que as regras podem variar de acordo com o abrigo em que a criança ou jovem esteja. 

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Fonte: Estatuto da Criança e do Adolescente.

Tentativas

As tentativas de reintegração e seus desafios

Para a psicóloga Flavia da Silva, 29, que trabalhou no Saica do Rio Pequeno (SP) - o mesmo em que Joyce atingiu a maioridade - lidar com o desacolhimento (como é chamada a saída do jovem do abrigo, ao atingir 18 anos) é um desafio. “Geralmente as histórias são permeadas por negligências e violências e isso vai atrapalhar, por exemplo, no que a gente entende que poderia ajudar para uma saída mais autônoma”, explica. 

Flávia tinha um papel bem específico na instituição. Ela trabalhava para tentar fazer as crianças e adolescentes voltarem para as famílias de origem ou, ao menos, para a família extensa. Mesmo admitindo ter presenciado casos de violência e desprezo por parte de algumas famílias, ela acredita que a reintegração deve prevalecer.

O Estatuto da Criança e do Adolescente exerce forte influência, na opinião de Flávia, na condução dos Saicas em relação ao desacolhimento. De acordo com o ECA, é direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família, por isso só quando não há mais possibilidade de reinserção familiar é que essas crianças e jovens entram para a fila de adoção. Simultaneamente, eles envelhecem nos abrigos, impossibilitando que sejam adotados.  

Em um contexto de abandono, parte considerável dos jovens têm dificuldades no aprendizado, o que impede o desenvolvimento de uma autonomia gradual junto aos profissionais das instituições. “Muitos tinham questões com a escola, não gostavam de frequentar ou tinham dificuldade para acompanhar a parte pedagógica. Muitos não tinham terminado o Ensino Médio e isso impactava quando eles procuravam um emprego, porque eles precisavam ter um nível de escolaridade que muitas vezes não conseguiam alcançar”, destaca Flávia. 

Considerando essas dificuldades, a psicóloga diz que a instituição tentava sensibilizar esses jovens a refletirem como seria a vida depois dos 18 anos. Quando não havia possibilidade de retorno familiar, os profissionais incentivavam os adolescentes a voltarem a estudar e a conseguirem um emprego, além de tentarem organizar a saída no que se refere à moradia, orientando-os a residirem com amigos ou parceiros. 

Mesmo com esse trabalho, no período que Flávia trabalhou no abrigo, houve um desacolhimento que infelizmente não alcançou o que a equipe técnica desejou. Um jovem saiu da instituição e foi viver no Centro de Acolhida, que oferece acolhimento provisório para pernoite de pessoas em situação de rua. 

Quando questionada se esse destino é considerado pelos profissionais na preparação dos jovens para a maioridade, Flavia responde: “não dá pra gente fazer um projeto esperando que eles vão para um centro de acolhida, porque é admitir que nós falhamos totalmente. Eu não faria um projeto visando isso, porque é o mesmo que dizer: você continua sem direito garantido, você continua sem ter onde morar, sem um salário, sem condições de se manter”.

Plano individual de atendimento (PIA)

O Plano individual de Atendimento (PIA)

Para tentar contornar essas dificuldades e preparar os jovens para a maioridade, há o Plano Individual de Atendimento (PIA), um instrumento previsto na Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, presente no Artigo 101, parágrafo 4º, do ECA. O PIA visa o desenvolvimento pessoal e social do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa. 

As equipes técnicas das instituições são responsáveis por fazer esse planejamento, junto ao adolescente e seu grupo familiar. Segundo o manual de orientações do PIA, todos os setores envolvidos no atendimento ao adolescente (judicial, administrativo, pedagógico, saúde, segurança, família e comunidade) devem respeitar a individualidade de cada jovem, assim como o seu desenvolvimento socioeducativo. 

Na prática, Flávia afirma que, apesar de existir um norte para essa política, cada abrigo institui como irá pensar o projeto de vida com os adolescentes, assim como a preparação para o desacolhimento. Por exemplo, se há a possibilidade da criança ou jovem voltar para a família de origem, Flávia conta que o PIA serve para auxiliar a equipe técnica no planejamento da construção de laços com a família de origem, telefonando, convidando-os para o abrigo e entendendo o contexto familiar.  

Com jovens próximos à maioridade, o planejamento da psicóloga Flávia e da equipe se direciona para o desacolhimento, conseguindo vagas em escolas, acompanhando em entrevistas de emprego. Para aqueles que não têm a possibilidade de voltar para a família de origem ou ir para uma república, o auxílio é direcionado para a procura de casas para alugar. 

Já para a assistente social Jéssica Sampaio, 27, que estagiou em um Saica em Itaquera, administrado pela obra social Dom Bosco, o PIA auxilia as crianças, mas não é suficiente para guiar os jovens no desacolhimento, servindo mais como um documento informativo do que propriamente um plano de assistência.

Segundo ela, o PIA é feito a cada seis meses e no documento constam as seguintes informações: nome da criança e adolescente, idade, composição familiar, o que ele (a) gosta de fazer, se participa de alguma atividade extra, fora da escola, como que é o desempenho na escola, se tem algum problema de saúde. Também constam do PIA como é a relação familiar do acolhido (a), se recebe visitas, se tem intenção de trabalhar e a expectativa dele (a) em relação à adoção ou colocação em família extensa. 

Há uma dificuldade maior para o caso dos jovens que deixam o abrigo e vão morar sozinhos. “Aí fica mais difícil. A gente consegue orientar, mas fazer para além disso é muito complicado”, afirma Jéssica. Ela complementa dizendo que a situação se agrava quando o adolescente tem alguma questão de saúde mental ou de uso de substâncias. “Alguns voltam para o tráfico, mas isso vai depender muito do adolescente. A gente oferta um trabalho formal, mas o menino numa semana no tráfico consegue R$ 150, então é bem triste pensar em tudo isso”, conta. 

Para Rodrigo, o PIA apresenta falhas tanto nas informações básicas quanto no planejamento da vida das crianças e jovens dentro das instituições. Apesar de ele não poder participar da elaboração do planejamento - por não fazer parte da equipe técnica -, tem contato direto com o documento. “Ele devia ser aprimorado, porque o PIA só vai mostrar o que foi feito com o abrigado naquele período, mas nada tão efetivo. Por exemplo, mostra o nome da escola que a criança ou adolescente estuda, o curso de informática que ele fez, se a vacina está em dia, mas não mostra o grau realmente de saúde, não fala o porquê fez tal exame, sabe?”, explica.

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Fonte: Levantamento Nacional das Crianças e Adolescentes em Serviços de Acolhimento (Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz - 2013) e Estatuto da Criança e do Adolescente. 

Acolhidos x Fila de adoção

Acolhidos x Fila de adoção

Segundo dados de outubro de 2021 do Sistema Nacional de Ação e Escolha (SNA), do Conselho Nacional de Justiça, 29.365 crianças e adolescentes vivem em abrigos em todo o país. Em contrapartida, atualmente há 32.847 mil pessoas na fila de adoção. Os números não fecham por diversos motivos, entre eles: apenas 17% dos pretendentes aceitam adotar crianças e adolescentes com 8 anos ou mais, sendo que mais de 65% dos abrigados têm mais de 9. 

Para o orientador Rodrigo, isso faz com que as adolescentes atinjam a maioridade dentro das instituições. “As pessoas precisam entender que o Saica não é uma fábrica de adoção, onde eu coloco na ficha que quero uma criança branca, do olho verde, do cabelo liso e pronto. Enquanto têm essas pessoas na fila, elas atrapalham o processo de adoção de quem tá lá atrás na fila. Enquanto a técnica trabalha para encontrar uma criança com esse perfil,  ela deixa de atender uma família que não faz essas exigências”, destaca. 

Além disso, ele acredita que os próprios abrigos falham ao tentarem reintegrar as crianças com as famílias de origem, principalmente quando a família não quer manter esse vínculo.

Já para Flávia, as instituições devem continuar tentando realizar essa reintegração, pois há um vínculo judicialmente preservado com a família de origem. “Por um lado, eu penso que se a destituição se tornar algo muito comum, se corre o risco de quase criminalizar as relações, sabe? Tem relações que a gente percebe que não tem essa de fortalecimento de vínculo, mas essa não é uma decisão que cabe à equipe do Saica, isso é do Judiciário. E de qualquer forma nós continuamos tentando reintegrar à família, porque esse é o objetivo do nosso trabalho”, declara a psicóloga. 

Flávia também afirma que um dos motivos dos pretendentes na fila de adoção não aceitarem crianças acima de 8 anos é devido a uma visão estereotipada dos acolhidos.

Existe uma certa discriminação quanto à adoção de crianças mais velhas e de adolescentes. As pessoas não querem um adolescente, porque consideram que ele já tem hábitos, pode vir com vícios, já tem um modo de pensar que não vai mudar nunca, então eles não querem ter trabalho.  

Já a assistente social Jéssica acredita que pode haver uma diminuição na discrepância entre o número de jovens nos abrigos e o de pretendentes a adotar com as leis de adoção no Brasil. “A tendência, com a lei pensando na reintegração familiar e na adoção, é diminuir o número de adolescentes que completam a maioridade em serviço de acolhimento. Então acho que essas mudanças na lei trouxeram outras possibilidades para essas crianças e adolescentes”, afirma. 

 

Apesar de ter uma visão mais otimista sobre o futuro desses jovens, ela reconhece as dificuldades: “hoje o perfil de adoção de brasileiros está centrado em meninas brancas de até 2 anos e o que a gente tem no Saica são meninos pretos de 12”.

Políticas Públicas

Políticas públicas 

Segundo o site da Prefeitura da cidade de São Paulo, os Saicas mantêm articulação com a Supervisão de Assistência Social (SAS), serviço responsável por articular e participar de ações com as redes de serviços socioassistenciais (Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). 

Dentro dos abrigos, esses serviços têm como objetivo atender as crianças e adolescentes, com base no ECA e na Política Nacional de Assistência Social (PNAS). 

Na prática, essas organizações trabalham para assegurar alguns direitos, como garantir a realização de cursos de capacitação, oferecer atendimento psicossocial, além de fortalecer a função protetiva das famílias, assim como garantir a utilização dos equipamentos e serviços disponíveis na comunidade local aos abrigados. 

Flávia afirma que as organizações auxiliam a equipe técnica do Saica Rio Pequeno na inserção dos jovens na vida comunitária. O CREAS, segundo a psicóloga, supervisiona o trabalho e é presente para fazer valer esta política pública. No entanto, Joyce diz que todos os cursos que fez e os trabalhos que conseguiu não foram com o auxílio destas organizações. 

Fonte: Site do Governo Federal.

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Um outro serviço oferecido pelos Saicas junto às redes socioassistenciais é o Centro para Crianças e Adolescentes (CCA), que tem como objetivo desenvolver atividades culturais, esportivas e de sociabilidade para crianças e adolescentes de 6 a 14 anos. De acordo com Rodrigo, o CCA tem autonomia para realizar as atividades que julgar importantes, sendo específicas de acordo com cada unidade. Ele também afirma que é para o CCA que ele e os demais orientadores encaminhavam os acolhidos do Saica Jovens do Futuro. Lá os adolescentes tinham aulas de inglês e informática. 

Já no Saica em que Jéssica estagiou, eram ofertados diversos cursos, mas ela afirma que isso ocorria devido à influência do abrigo na região de Itaquera, o que permitia um repasse público para essa finalidade. Jéssica relembra que o Saica administra um Centro de Desenvolvimento Social e Produtivo (CEDESP), que oferece cursos profissionalizantes nas áreas de informática, marketing, panificação, logística, eletrônica e de cabeleireiro.

A assistente social destaca que os jovens acolhidos têm prioridade na inserção destes cursos e que esta facilidade é própria da instituição, considerando que a grande maioria não consegue realizar a prova de maneira satisfatória, devido à pouca escolaridade. Ainda segundo Jéssica, o Saica também prepara os adolescentes para o mercado de trabalho, cadastrando-os em plataformas de emprego.

Como os serviços ofertados pelos Saicas não conseguem ajudar esses jovens em todas as esferas de sua vida, existem algumas organizações que trabalham a fim de garantir que esses sujeitos tenham uma preparação adequada para a maioridade. É o caso do Instituto Fazendo História, uma organização sem fins lucrativos, com sede em São Paulo,  que tem como objetivo ajudar crianças e adolescentes em serviços de acolhimento. 

A instituição desenvolve programas junto aos acolhidos e aos profissionais das redes de acolhimento. Um dos projetos é o “Grupo Nós”, que busca construir estratégias de apoio na transição para a vida adulta desses jovens. 

Você pode conferir um bate-papo com Mahyra Costivelli e Laís Boto, coordenadora e técnica do “Grupo Nós”, no

Podcast Desabrigados pela Maioridade

 

Acesse aqui 

Segundo a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), na cidade de São Paulo há mais 57 equipamentos voltados para a capacitação profissional e o desenvolvimento de habilidades de jovens e adultos (sem especificar quantos destes são específicos para adolescentes acolhidos). Contudo, apenas o CCA foi citado em uma das quatro instituições, tanto pela equipe técnica quanto pelos jovens. 

Já a república jovem - única política pública assegurada pelo Estado para jovens que saem dos abrigos - foi mencionada por todos. As repúblicas são destinadas aos adolescentes que não têm possibilidade de voltar para a família de origem e nem a opção de colocação em família extensa, ou, ainda, que não tenham condições de moradia e autossustentação.

Porém, para conseguir uma vaga, esses jovens precisam estar, obrigatoriamente, estudando ou trabalhando. Os jovens que não cumprem esses requisitos têm que procurar um local para morar ou são orientados a voltar para a família de origem. Além disso, há poucas unidades pelo país e poucas vagas em cada uma. 

Quando o jovem precisa, mas não consegue uma vaga na república, a equipe técnica ajuda o adolescente a alugar uma casa. Segundo Rodrigo, há um auxílio financeiro nos primeiros seis meses, porém não é uma política pública e sim uma iniciativa de cada abrigo junto com a ajuda do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Para ele, infelizmente é uma realidade comum esses jovens se encontrarem em situação de rua pós-desacolhimento, considerando que não há políticas públicas voltadas aos desacolhidos. 

O problema das políticas públicas destinadas a esses indivíduos durante o período em que estão abrigados inicia-se no momento da chegada. De acordo com o orientador, as falhas começam a aparecer durante o processo de adoção. 

Para ele, a demora neste processo faz com que as crianças que têm a chance de serem adotadas percam essa oportunidade, o que poderia ser evitado com uma política que assegurasse a verificação imediata dos perfis desejados pelos pretendentes nos Saicas. 

Outro impedimento é a forma como as políticas públicas para os acolhidos são elaboradas. O trabalho ocupa um espaço prioritário em relação à educação. Segundo Jéssica e Flávia, era comum os adolescentes acolhidos apresentarem dificuldades no aprendizado ou não terem interesse pelos estudos, mediante esse contexto. 

Evasões

Evasões

Segundo Levantamento Nacional das Crianças e Adolescentes em Serviços de Acolhimento, de 2013, há diversas razões para o desligamento das crianças e adolescentes das instituições. A primeira delas é o retorno para a família de origem e a segunda as evasões. 

Mais de 2.000 unidades de Saicas responderam ao questionário feito em 2013, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sobre evasões e foi constatado que 32% das crianças e adolescentes acolhidos saíram dos abrigos. O levantamento não explica o porquê de as evasões ocorrerem, mas pode-se concluir que esse comportamento tem relação com as dificuldades inerentes à maioria dos abrigados, como questões envolvendo o uso de drogas, violência e dificuldades na adaptação à instituição. 

Esses fatores são evidenciados em outros dados presentes neste mesmo levantamento. Como o dado de que 10% das crianças e jovens abrigados foram levados aos abrigos devido à situação de rua, 2,9% foram submetidos à exploração no trabalho ou mendicância e 19% foram abandonados pelos pais ou responsáveis, sendo impossibilitados de frequentarem a escola, apresentando dificuldades em conviver dentro dos abrigos. 

Ainda segundo o levantamento, das mais de 29 mil crianças e adolescentes abrigados em todo o país, 40% não recebia nenhum tipo de visita nas instituições. Para o orientador Rodrigo Alencar, essa situação frustrava os abrigados do Saica Jovens do Futuro. Mas ele afirma que muitos dos que recebiam visitas também se decepcionavam, pois os pais e responsáveis só iam até o local visitar, para cumprir uma determinação judicial. “Às vezes tinha família que ia visitar a criança e ficavam mexendo no celular e a criança fica brincando sozinha. Outra vez uma mãe perguntou para mim se não tinha como a gente dar um celular pra filha, porque assim ela faria uma chamada de vídeo e não precisaria ir até lá.” 

Segundo a assistente social Jéssica Sampaio, no caso de algumas evasões de crianças e adolescentes nas instituições administradas pela obra Dom Bosco a orientação era fazer um boletim de ocorrência e guardar a vaga do jovem no abrigo por três dias. Essa instrução também consta da cartilha de orientações técnicas para elaboração do PIA. Além de mencionar a especificação “não se aplica” no PIA do acolhido, caso desligamento ocorrer por evasão ou transferência para outro serviço de acolhimento. Assim, apesar de ocorrer com frequência, não há políticas públicas voltadas para esta questão e nem um trabalho centrado para o problema.  

Para Rodrigo, essas crianças e adolescentes não estão sendo notados pelo Estado e por isso há tanta negligência. “Aqueles que não têm uma família acompanhando durante o acolhimento, eles não vão ter quando saírem daqui. É uma dificuldade muito grande, porque além disso, tem a questão deles se sentirem rejeitados pela sociedade. Eles não têm nenhuma lembrança da família ou se tem alguma lembrança é muito superficial, então quando eles completam 18 anos eles não querem ir embora, porque eles entendem que aqui é o espaço deles."

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